quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Imagens de um pesadelo: representações da Peste Negra na Europa



Diante do horror da morte inevitável, muitos artistas captaram em quadros a imagem do medo que assolava a Europa. Cadáveres amontoados na rua, deuses violentos, rostos desesperados: são imagens frequentes nas obras de arte do período. A esse arquivo, já bastante extenso, podem ser acrescentados outros trabalhos: livros, diários, conselhos eclesiásticos e até um santo protetor contra a peste, tudo podia ser utilizado para tranquilizar a população assombrada pela morte negra. Vejamos algumas dessas representações.

Uma praga

Uma das representações mais comuns no período de pestilência é a sua transformação em uma praga divina. Elas, por suas consequencias sociais óbvias, via unida a outros males como a fome, o desemprego, guerra e miséria. Muitas das vezes chega a ser comparada com as que atingiram o Egito na época de Moisés. "É ao mesmo tempo identificada como uma nuvem devoradora [metáfora da praga dos gafanlhotos] que chega do estrangeiro e que se desloca de país em país, da costa para o interior e de uma extremidade á outra de uma cidade, semeando a morte à sua passagem", escreve Delumeau.

Um grande incêndio

Por se alastrar de pessoa a pessoa, a peste também foi representada com um grande incêndio. Boccaccio em O Decamerão observa que "a intensidade da epidemia aumentou pelo fato de os doentes, por suas relações cotidianas, contaminarem os indivíduos ainda sãos. Assim é com o fogo, alimentado pelas matérias secas ou gordurosas que lhe são contíguas". D. Defoe também usa a mesma metáfora: "A peste é como um grande incêndio que [...], se irrompe numa cidade muito densa, aumenta sua fúria e a devasta em toda a sua extensão".

Chuva de flexas

Para os homens de Igreja e para os artistas que trabalhavam graças às suas encomendas, a peste era também e sobretudo uma chuva de flexas abatendo-se de súbito sobre os homens pela vontade de um Deus encolerizado. "O que os artista queriam também acentuar, além do aspecto da punição divina, era a instataniedade do ataque do mal e o fato de que, rico ou pobre, jovem ou velho, ninguém podia vangloriar-se de a ele escapar - dois aspectos das epidemias que impressioram vivamente todos aqueles que viveram em período de peste. A insistência na rapidez registra-se em todos os relatos de 'pestilência', escreve Delumeau. Um médico espanhol, aponta o historiador, descrevendo a peste de Málafa em 1650, fazia a mesma observação: "Muitos morriam repentinamente, outros em algumas horas, e aqueles que se acreditavam salvos caíam mortos quando menos se pensava".


São Sebastião


A comparação entre o ataque da peste e o das flechas que se abatem de improviso sobre as vítimas teve por resultado a promoção de São Sebastião na piedade popular. Delumeau explica que o motivo da popularidade do santo se deve a um princípio do magismo clássico."Atuou aqui uma das leis que domina o universo do magismo, a lei de contraste que muitas vezes não é senão um caso particular da lei de similaridade: o semelhante afasta o semelhante para suscitar o contrário. Porque São Sebastião morrera crivado de flechas, as pessoas convenceram-se de que ele afastava de seus protegidos as da peste", argumenta o historiador.

Corpos monstruosos


Outra representação recorrente é a imagem de corpos amontoados com tons azulados em estado de putrefação. "As sepulturas repletas de cadáveres mostram 'corpos monstruosos, uns inchados e negros como carvão, outros igualmente inchados, azuis, violetas e amarelados, todos fedorentos e estourados, deixando rastro do sangue podre", descreve Delumeau. Vejamos também o depoimento do Frei Benedetto Cinquanta que enumera o quadro pavoroso da peste de 1630 em Milão: "[...] a confusão dos mortos, dos moribundos, do mal e dos gritos, os uivos, o pavor, a dor, as angústias, os medos, a crueldade, os roubos, os gestos de desespero, as lágrimas, os apelos, a pobreza, a miséria, a fome, a sede, a solidão, as prisões, as ameaças, os castigos, os lazaretos, os unguentos, as operações, os bubões, os carbúculos, as suspeitas, os desfalecimentos".


Entrelinhas: No próximo post [desta vez eu o farei], falarei sobre literatura e monstruosidade. Um abraço monstruoso para todos.

Para saber mais...


DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Imagem 01: Peste Negra (retrata uma das imagens mais importantes da epidemia: a doença como uma flecha)
Imagem 02: São Sebastião - pintura de Guido Reni (Séc. XVII).
Imagem 03: A praga de Atenas no ano de 430 a.C. (a imagem representa o corpo azulado do doente e horror de um cidadão diante do odor do enfermo).


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