terça-feira, 24 de novembro de 2009

Imaginação materna: a faculdade formadora de monstros


Refilmagem de Nasce um monstro (2008)

Certos costumes, crenças e hábitos aparentemente banais podem ter origens remotas . Ainda hoje é comum as pessoas relacionarem as ânsias maternas ao nascimento do filho. Pode-se ouvir por aí  quem ratifica a crença na satisfação dos desejos da mulher em período de gestação. "Não se pode contrariar o desejo da mãe de comer chocolate, porque, senão, o filho pode nascer deformado" ou ainda "Ela está desejando" (assim mesmo com o verbo no intransitivo).

Esse costume tem origem nos séculos XVI e XVII, e remonta a uma verdadeira aventura da medicina e biologia da época para explicar o nascimento de crianças monstruosas. Os eruditos, doutos, médicos daquele tempo se viam diante de um problema que a ciência de então não solucionava: como explicar o nascimento de crianças-lobo, com duas cabeças, irmãos siameses, etc. A única constatação evidente era a de essas crianças, na verdade, eram monstros.

Uma ciência misteriosa

Para os doutos do período 'exercer a ciência significava confrontar-se com um lado da natureza no qual a matéria servia de suporte a toda sorte de forças ocultas. Tais forças misteriosas tanto podiam ser instrumento direto da vontade divina quanto podiam ser, ainda, expressão de harmonias e relações dissimuladas entre as diferentes partes do universo, igualmente incompreensíveis', escreve a historiadora Mary del Priore.
Fortunio Liceti, médico do século XVII.


Análise médica do que nunca foi visto

Além dessa concepção de ciência, vale ressaltar que o médico muitas vezes não era testemunha ocular do caso que descrevia. A maior parte das crianças monstruosas que ornamentam a literatura médica do século XVII nascera em áreas rurais, longe de qualquer médico. Elas entraram no mundo científico tendo como passaporte um atestado assinado por um velho padre, um cirurgião barbeiro ou uma parteira. O caso registrado era encaminhado a algum médico da cidade mais próxima, que, em vez de se mexer para constatar se de fato a criança tinha cabeça de elefante, duas asas de águia e pés de galinha, 'preferia dissertar sobre os erros da faculdade formadora do útero feminino num monstro que ele jamais viu, mas sobre o qual não parava de falar', afirma ainda Priore.

Senso crítico?

Priore relata, contudo, que esses médicos e sábios dos séculos XVI e XVII não eram desprovidos completamente de senso crítico. 'Quando repetiam um fato extraordinário, não o levavam inteiramente a sério', informa. Mas, mesmo assim, esse ceticismo era baseado ainda em preceitos da época e algumas justificativas para essa postura vinha de explicações ainda mais despropositadas. 'Quando Fortunio Liceti lê em Plínio que uma mulher copulara com um elefante, dando à luz um elefantinho, ele, ceticamente, nega-se a acreditar. E por quê? Porque, como todos sabiam, o elefante era um animal considerado muito casto, tendo por hábito esconder-se para realizar o ato sexual; como poderia ele, descaradamente, engravidar uma mulher?!', exemplifica a historiadora.


A mãe: a faculdade formadora do útero

Desse contexto, tem-se que muitos médicos de outrora definia a criança monstruosa como consequência da imaginação materna que se exercia inconscientemente sobre o útero que, por sua vez, deformava o bebê em gestação. Veja como se dava esse raciocínio: 'Apresentava-se à mulher algo de seu agrado; tal objeto excitava seu apetite. Este, por sua vez, movia e comandava a potência motriz executora das vontades da dita mulher. Tal potência agitava os espíritos, que recebiam no cérebro a imagem cobiçada, fecundando a seguir o embrião e imprimido-lhe a imagem que lhe fora consignada', descreve Priore. Assim, se a mulher tivesse visto lagosta durante a gravidez, por exemplo, daria à luz uma criança e uma lagosta (ou uma criança deformada como uma lagosta).

O pai: a semente degenerada

Os médicos da época também argumentavam que os pais podiam contribuir, embora em menos casos, com a monstruosidade da criança. A existência de gêmeos cujos corpos estivessem grudados, por exemplo, era normalmente, explicada pela quantidade excessiva de semente para um embrião, mas insuficiente para dois, relata a historiadora.

O grande passo que essas explicações médicas dão para o surgimento dos monstros vão no sentido de afastar a explicação teológica de que eles são criatura surgidas da ira divina. 'Graças à faculdade formadora, a questão dos monstros afastava-se do âmbito teológico e restringia-se, pouco a pouco, aos domínios das questões 'naturais'. A partir dos finais do século XVII, o assunto ganharia uma importância particular, e isso sobretudo porque os monstros são alvo de exames cada vez mais detalhados. Os progressos do espírito científico não permitiam mais que se dissertasse sobre um monstro que não tivesse sido visto com os próprios olhos', conclui Priore.


Para saber mais...

PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Nenhum comentário:

Postar um comentário