sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Os monstros são filhos de Deus?



                                                       Ulisse Aldrovandi(1522-1605) - Monstrorum historia

Os monstros que povoavam o imaginário medieval suscitaravam um problema teológico: se, de fato, eles existissem, como relatavam os cronistas da época, teriam surgido como um erro da Criação? Os monstros seriam filhos de Deus? Em resposta a essas questões, se levantou um dos maiores filósofos medievais: Santo Agostinho. O filósofo de Hipona foi um dos primeiros a perceber a importância dos monstros para o imaginário das populações.

Santo Agostinho se pergunta se seriam os monstros simultaneamente homens e criaturas de Deus. Se a inquestionável autoridade de Plínio, o velho, estivesse correta, seriam eles filhos de Adão? E por que razão interferiam na harmonia da Criação? O filósofo que via nos monstros uma expressão da vontade de Deus recorre à Bíblia para explicar a essas questões à luz da teologia:

"Pergunta-se, além disso, se é crível que os filhos de Noé ou mesmo, de Adão, de quem esses também procedem, se hajam propagado certas raças de homens monstruosos de que a história dos povos dá fé. Assegura-se, com efeito, que alguns têm um olho no meio da testa, que outros têm os pés virados para trás, que outros possuem ambos os sexos, a mamila direita de homem e a esquerda de mulher, e que, servindo-se carnalmente deles, alternativamente geram e dão à luz"

Para Agostinho, os monstros tinham algo a 'mostrar'. 'Eles mostravam (monstra = monstrare), manifestavam (ostenta = ostentare), prediziam (portenta = pra-ostendere) e anunciavam (prodigia = pro-dicere) antecipadamente tudo o que Deus ameaçara realizar futuramente no tocante aos corpos humanos. Monstros mostravam, portanto, o que podeira acontecer aos homens e os instigavam a pensar como seriam se não fossem como eram', escreve a historiadora Mary Del Priore.

O filósofo cristão conclui que os monstros descendem de Noé, já que a terra teria sido renovada com o dilúvio, e que, por conseguinte, a aparição de um homem monstruoso não deveria ser considerada um erro de Deus. 'Os monstros, homem ou raças, argumentava Santo Agostinho, faziam parte do mundo e concorriam para sua beleza. Mesmo que não pudermos explicar por que Deus os criou, devemos confessar nossa ignorância e recusar a idéia de considerá-los erros da natureza', acrescenta Priore.


               Os monstros, assim como os homens, descenderiam de Noé 

O principal resultado das reflexões agostinianas é que as raças monstruosas vão poder ser tratadas como mirabilia, o que santo Agostinho não desejava exatamente. 'Largamente representados, os monstrengos medievais acabaram por tornar-se familiares a seus contemporâneos. Além de enfeitar capitéis, pórticos e iluminuras, os monstros passaram a encontrar seu lugar em bestiários - livros que somavam histórias e descrições de animais verdadeiros e imaginários -, fazendo com que a erudição enciclopédica e o pensamento religioso se reunissem', conclui a historiadora.

Quem foi Santo Agostinho


Aurélio Agostinho (em latim: Aurelius Augustinus), Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho (Tagaste, 13 de Novembro de 354 — Hipona, 28 de Agosto de 430), foi um bispo, escritor, teólogo, filósofo, padre e Doutor da Igreja Católica. Agostinho é uma das figuras mais importantes no desenvolvimento do cristianismo no Ocidente. Agostinho foi muito influenciado pelo neoplatonismo de Plotino. Ele aprofundou o conceito de pecado original dos padres anteriores e, quando o Império Romano do Ocidente começou a se desintegrar, desenvolveu o conceito de Igreja como a cidade espiritual de Deus (em um livro de mesmo nome), distinta da cidade material do homem. Seu pensamento influenciou profundamente a visão do homem medieval. A igreja se identificou com o conceito de Cidade de Deus de Agostinho, e também a comunidade que era devota de Deus. 

Para saber mais...

SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus (contra os pagãos). Petrópolis: Vozes, 1990.
PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Imagem: Santo Agostinho: "Os monstros concorrem para a beleza da Criação"

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