quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A sedução do vampiro

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E com vocês mais uma sucesso de audiência: o vampiro! Diante do expressivo número de fãs de nosso personagem, me pareceu razoável fazer um post que falasse exclusivamente dele. Mas a novidade não é tão nova. O tema, defende alguns, remota desde o Antigo Egito. Dos monstros, sem dúvida, é o mais popular: ao mesmo tempo que assusta, atrai, é sedutor. O vampiro não ataca a vítima, ela que se entrega às suas presas sedentas de sangue humano (Leia mais em: Conceito III: As sete teses). 'Se, por um lado, o vampiro é o horripilante que a ciência deve destruir, ou seja, a ameaça que nos atrai para a zona perigosa de umbral que é a morte-vida, por outro ele apresenta um lado mágico e mítico que fascina. Lado da sedução, da magia e do sonho: a vítima entrega o seu pescoço (sensual) ao morcego liberto', afirmam Aidar e Maciel.

Mas sem realizarmos um extenso estudo sobre o nosso temido e amado sangue-suga, falaremos apenas algumas das principais questões relativas ao nosso habitante das trevas. É inegável o imenso número de filmes (em certo sentido até constrangedor) que tratam do vampiro. Basta dá uma olhada nas prateleiras de uma locadora para ver as versões mais estranhas para a lenda. Do Drácula de Bram Stocker de Francis Coppola (1992), um dos mais bem elaborados na opinião desse pobre mortal, passando pelo estranho Entrevista com o Vampiro, em que vampiros metaforicamente encenam peças de teatro com humor negro, e chegando ao mais novo sucesso de bilheteria que a série iniciada com o Crepúsculo (2008).

Nobres ociosos e libertinos


Em um interessante ensaio, Aidar e Maciel registram que 'algumas bocas afirmam que os vampiros eram nobres ociosos que promoviam grandes orgias noturnas, atraindo donzelas da plebe. O alho poderia ter passado à história em função da estratégia das mães, que obrigavam as meninas a mastigarem-no para ficarem com mau hálito'.

Homossexualidade e Bissexualidade


Aparentemente sedutores de virgens e donzelas em perigo, os vampiros são representantes eminentemente da bissexualidade, pois se satisfazem tanto com sangue de homens como de mulheres. O ato de morder o pescoço da vítima, uma das zonas mais erótica do corpo, e de sugar o seu sangue, lembra (mas também serve de símbolo) do ato sexual. O crítico de cinema, Luiz Nazário afirma que 'o vampiro pode satisfazer-se tanto em homens quanto em mulheres, numa luxúria que contamina as vítimas. Sua verdadeira natureza é bissexual'.
O mesmo pesquisador ainda acrescenta uma padrão de similitude entre a condição vampiresca e a homossexualidade. Nazário argumenta que ambos os códigos é uma rebeldia contra os preceitos (preconceitos) de nossa sociedade. 'Tal como o morto-vivo, condenado a viver na sombra, o homossexual não pode mostrar seu desejo à luz do dia, privado da felicidade cotidiana, exclusiva dos casais heterossexuais. Tanto o vampiro quanto o homossexual representam uma ameaça fatal às instituições fundamentais da civilização: daí sua vinculação com a morte', escreve o pesquisador.

Aidar e Maciel também observam que o vampiro pode ser entendido com a representação dos excluídos do padrão de 'normalidade' estabelecida pela sociedade. Aqueles cujas formas de vida se diferenciavam dos demais eram, pois, considerados monstros. Eles seriam, escrevem, 'desgraçados no outro mundo, figuras errantes em busca de paz. Fantasmas andarilhos, presos entra a vida e a morte, cujo desespero os levava à busca da pacificação momentânea no sangue dos vivos. Sem dúvida, quem pagava o pato eram os suicidas, os malditos, os bruxos, os excomungados e sacrílegos; enfim, aqueles cujas singularidades não eram consideradas exemplares'.

Os educados vampiros atuais

Pelo que se observa, os vampiros atuais, jovens e apaixonados, ganham conotações mais humanizadoras. O forte teor erótico (homoerótico e de tendência bissexual) presentes nas representações anteriores, inclusive nos filmes citados, dão lugar ao ímpeto juvenil do rapaz que se apaixona por sua própria presa. Bonzinhos, educados e cheios de pudores, os novos vampiros não mais assustam. Agora eles querem ser como os humanos e sofrem demasiadamente por isso, como se o fato de ser homem preso aos padrões sociais do bom comportamento (eles vão à escola, fazem os deveres) fosse algo a se desejar. Particularmente prefiro os vampiros subversivos que contestam a ordem instituída. Eles vem nos perguntar por que consideramos normal as leis sociais. Ao invés de se apaixonar (obrigando-se a um relacionamento estável), o vampiro tradicional nos pergunta por que temos que casar, por que não ficamos com quem queremos (homem, mulher, os dois, os três). O vampiro clássico é a apoteose dos nossos instintos mais animalescos (o Id para os psicanalistas) e o atual é o jovem reprimido que vive sob a máscara da civilização que impõe o seu padrão de moda e comportamento social. Escondidos, os vampiros de Meyer é a representação do adolescente angustiado entre o pode ser e o que é obrigado a ser. Estranhamente, a autora propõe o bom comportamento como meta. Falta-nos vampiros mais revolucionários.

Para saber mais...


AIDAR, José Luiz; MACIEL, Márcia. O que é vampiro. São Paulo: Brasiliense, 1986.
NAZÁRIO, Luiz. Da natureza dos monstros. São Paulo: Arte & Ciência, 1998.

Imagem: Drácula de Bram Stocker de Fancis Coppola

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Imaginação materna: a faculdade formadora de monstros


Refilmagem de Nasce um monstro (2008)

Certos costumes, crenças e hábitos aparentemente banais podem ter origens remotas . Ainda hoje é comum as pessoas relacionarem as ânsias maternas ao nascimento do filho. Pode-se ouvir por aí  quem ratifica a crença na satisfação dos desejos da mulher em período de gestação. "Não se pode contrariar o desejo da mãe de comer chocolate, porque, senão, o filho pode nascer deformado" ou ainda "Ela está desejando" (assim mesmo com o verbo no intransitivo).

Esse costume tem origem nos séculos XVI e XVII, e remonta a uma verdadeira aventura da medicina e biologia da época para explicar o nascimento de crianças monstruosas. Os eruditos, doutos, médicos daquele tempo se viam diante de um problema que a ciência de então não solucionava: como explicar o nascimento de crianças-lobo, com duas cabeças, irmãos siameses, etc. A única constatação evidente era a de essas crianças, na verdade, eram monstros.

Uma ciência misteriosa

Para os doutos do período 'exercer a ciência significava confrontar-se com um lado da natureza no qual a matéria servia de suporte a toda sorte de forças ocultas. Tais forças misteriosas tanto podiam ser instrumento direto da vontade divina quanto podiam ser, ainda, expressão de harmonias e relações dissimuladas entre as diferentes partes do universo, igualmente incompreensíveis', escreve a historiadora Mary del Priore.
Fortunio Liceti, médico do século XVII.


Análise médica do que nunca foi visto

Além dessa concepção de ciência, vale ressaltar que o médico muitas vezes não era testemunha ocular do caso que descrevia. A maior parte das crianças monstruosas que ornamentam a literatura médica do século XVII nascera em áreas rurais, longe de qualquer médico. Elas entraram no mundo científico tendo como passaporte um atestado assinado por um velho padre, um cirurgião barbeiro ou uma parteira. O caso registrado era encaminhado a algum médico da cidade mais próxima, que, em vez de se mexer para constatar se de fato a criança tinha cabeça de elefante, duas asas de águia e pés de galinha, 'preferia dissertar sobre os erros da faculdade formadora do útero feminino num monstro que ele jamais viu, mas sobre o qual não parava de falar', afirma ainda Priore.

Senso crítico?

Priore relata, contudo, que esses médicos e sábios dos séculos XVI e XVII não eram desprovidos completamente de senso crítico. 'Quando repetiam um fato extraordinário, não o levavam inteiramente a sério', informa. Mas, mesmo assim, esse ceticismo era baseado ainda em preceitos da época e algumas justificativas para essa postura vinha de explicações ainda mais despropositadas. 'Quando Fortunio Liceti lê em Plínio que uma mulher copulara com um elefante, dando à luz um elefantinho, ele, ceticamente, nega-se a acreditar. E por quê? Porque, como todos sabiam, o elefante era um animal considerado muito casto, tendo por hábito esconder-se para realizar o ato sexual; como poderia ele, descaradamente, engravidar uma mulher?!', exemplifica a historiadora.


A mãe: a faculdade formadora do útero

Desse contexto, tem-se que muitos médicos de outrora definia a criança monstruosa como consequência da imaginação materna que se exercia inconscientemente sobre o útero que, por sua vez, deformava o bebê em gestação. Veja como se dava esse raciocínio: 'Apresentava-se à mulher algo de seu agrado; tal objeto excitava seu apetite. Este, por sua vez, movia e comandava a potência motriz executora das vontades da dita mulher. Tal potência agitava os espíritos, que recebiam no cérebro a imagem cobiçada, fecundando a seguir o embrião e imprimido-lhe a imagem que lhe fora consignada', descreve Priore. Assim, se a mulher tivesse visto lagosta durante a gravidez, por exemplo, daria à luz uma criança e uma lagosta (ou uma criança deformada como uma lagosta).

O pai: a semente degenerada

Os médicos da época também argumentavam que os pais podiam contribuir, embora em menos casos, com a monstruosidade da criança. A existência de gêmeos cujos corpos estivessem grudados, por exemplo, era normalmente, explicada pela quantidade excessiva de semente para um embrião, mas insuficiente para dois, relata a historiadora.

O grande passo que essas explicações médicas dão para o surgimento dos monstros vão no sentido de afastar a explicação teológica de que eles são criatura surgidas da ira divina. 'Graças à faculdade formadora, a questão dos monstros afastava-se do âmbito teológico e restringia-se, pouco a pouco, aos domínios das questões 'naturais'. A partir dos finais do século XVII, o assunto ganharia uma importância particular, e isso sobretudo porque os monstros são alvo de exames cada vez mais detalhados. Os progressos do espírito científico não permitiam mais que se dissertasse sobre um monstro que não tivesse sido visto com os próprios olhos', conclui Priore.


Para saber mais...

PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Os monstros são filhos de Deus?



                                                       Ulisse Aldrovandi(1522-1605) - Monstrorum historia

Os monstros que povoavam o imaginário medieval suscitaravam um problema teológico: se, de fato, eles existissem, como relatavam os cronistas da época, teriam surgido como um erro da Criação? Os monstros seriam filhos de Deus? Em resposta a essas questões, se levantou um dos maiores filósofos medievais: Santo Agostinho. O filósofo de Hipona foi um dos primeiros a perceber a importância dos monstros para o imaginário das populações.

Santo Agostinho se pergunta se seriam os monstros simultaneamente homens e criaturas de Deus. Se a inquestionável autoridade de Plínio, o velho, estivesse correta, seriam eles filhos de Adão? E por que razão interferiam na harmonia da Criação? O filósofo que via nos monstros uma expressão da vontade de Deus recorre à Bíblia para explicar a essas questões à luz da teologia:

"Pergunta-se, além disso, se é crível que os filhos de Noé ou mesmo, de Adão, de quem esses também procedem, se hajam propagado certas raças de homens monstruosos de que a história dos povos dá fé. Assegura-se, com efeito, que alguns têm um olho no meio da testa, que outros têm os pés virados para trás, que outros possuem ambos os sexos, a mamila direita de homem e a esquerda de mulher, e que, servindo-se carnalmente deles, alternativamente geram e dão à luz"

Para Agostinho, os monstros tinham algo a 'mostrar'. 'Eles mostravam (monstra = monstrare), manifestavam (ostenta = ostentare), prediziam (portenta = pra-ostendere) e anunciavam (prodigia = pro-dicere) antecipadamente tudo o que Deus ameaçara realizar futuramente no tocante aos corpos humanos. Monstros mostravam, portanto, o que podeira acontecer aos homens e os instigavam a pensar como seriam se não fossem como eram', escreve a historiadora Mary Del Priore.

O filósofo cristão conclui que os monstros descendem de Noé, já que a terra teria sido renovada com o dilúvio, e que, por conseguinte, a aparição de um homem monstruoso não deveria ser considerada um erro de Deus. 'Os monstros, homem ou raças, argumentava Santo Agostinho, faziam parte do mundo e concorriam para sua beleza. Mesmo que não pudermos explicar por que Deus os criou, devemos confessar nossa ignorância e recusar a idéia de considerá-los erros da natureza', acrescenta Priore.


               Os monstros, assim como os homens, descenderiam de Noé 

O principal resultado das reflexões agostinianas é que as raças monstruosas vão poder ser tratadas como mirabilia, o que santo Agostinho não desejava exatamente. 'Largamente representados, os monstrengos medievais acabaram por tornar-se familiares a seus contemporâneos. Além de enfeitar capitéis, pórticos e iluminuras, os monstros passaram a encontrar seu lugar em bestiários - livros que somavam histórias e descrições de animais verdadeiros e imaginários -, fazendo com que a erudição enciclopédica e o pensamento religioso se reunissem', conclui a historiadora.

Quem foi Santo Agostinho


Aurélio Agostinho (em latim: Aurelius Augustinus), Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho (Tagaste, 13 de Novembro de 354 — Hipona, 28 de Agosto de 430), foi um bispo, escritor, teólogo, filósofo, padre e Doutor da Igreja Católica. Agostinho é uma das figuras mais importantes no desenvolvimento do cristianismo no Ocidente. Agostinho foi muito influenciado pelo neoplatonismo de Plotino. Ele aprofundou o conceito de pecado original dos padres anteriores e, quando o Império Romano do Ocidente começou a se desintegrar, desenvolveu o conceito de Igreja como a cidade espiritual de Deus (em um livro de mesmo nome), distinta da cidade material do homem. Seu pensamento influenciou profundamente a visão do homem medieval. A igreja se identificou com o conceito de Cidade de Deus de Agostinho, e também a comunidade que era devota de Deus. 

Para saber mais...

SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus (contra os pagãos). Petrópolis: Vozes, 1990.
PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Imagem: Santo Agostinho: "Os monstros concorrem para a beleza da Criação"