terça-feira, 13 de outubro de 2009

Conceito II: Os anormais


Uma notícia recente colocou o mundo dos esportes em uma situação delicada: a atleta sul-africana Caster Semenya foi diagnosticada como hermafrodita. O evento ganhou proporcões na imprensa mundial. O que considerar nessa situação: a condição masculina ou feminina?

Durante o mundial de Berlim, quando o exame foi realizado, verificou-se que a fundista não possui ovários e tem órgãos sexuais masculinos internos, que estariam produzindo uma grande quantidade de testosterona.

Ainda que pareça recente, a questão já era conhecida desde a Idade Média, e até o século XVI, quando os hermafroditas eram, como hermafroditas, considerados monstros e executados, queimados, suas cinzas jogadas ao vento. Em um interessante estudo sobre esse contexto, o filósofo francês Michel Foucault analisa as três grandes figuras monstruosas: o monstro, o incorrigível, o onanista (o masturbador). Vejamos como o filósofo conceitua essa categoria:

A noção de monstro é essencialmente uma noção jurídica - jurídica, claro, no sentido lato do termo, pois o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. [...] Digamos que o monstro é o que combina o impossível com o proibido. [...] Podemos dizer que o que faz a força e a capacidade de inquietação dos monstros é que, ao mesmo tempo que viola a lei, ele a deixa sem voz. [...] O monstro é, por definição, uma exceção. (FOUCAULT, 2002, p. 69-130).

A teoria central do filósofo é de que o anormal é o monstro banalizado. Para provar isso, Foucault recorre aos exames médicos e aos relatórios jurídicos da Idade Média aos nossos dias. Assim, ele argumenta que os monstros questionam as leis estabelecidas pelo sistema jurídico, por isso sua afirmação de que a noção de monstro é jurídica. O caso da atleta parece ressoar a tese do pesquisador: a sua condição de hermafrodita questiona as leis, impondo um novo contexto que transgride as regras estabelecidas pelo sistema jurídico dos esportes. Ela é, pois, uma exceção a regra geral.

Entrelinhas: Amanhã continuaremos a nossa discussão sobre o que é um monstro. Você vai conhecer as famosas Sete Teses sobre a cultura dos monstros de Jeffrey Jerome Cohen. Vale ressaltar que, pelo que vimos hoje, a questão dos monstros está intimamente ligada a fenômenos do nosso cotidiano, principalmente se pensarmos nas nossas escolhas éticas e /ou ideológicas: o caso de Caster Semenya nos mostra que ainda não sabemos agir diante dessas questões interrogadoras. Ao menos, o Comitê não tomou uma decisão preconceituosa: a medalha que a atleta ganhou no Mundial de Berlim não lhe foi tomada.

"É igualmente monstro o ser que tem dois sexos e, por conseguinte, que não se sabe se deve ser tratado como menino ou como menina; se se deve ou não autorizá-lo a se casar e com quem; se pode ser titular de benefícios eclesiásticos; se pode receber as ordens religiosas, etc. Assim, a desordem da natureza abala a ordem jurídica, e aí aparece o monstro", Foucault.


Para saber mais:

FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Imagem: Grafite sobre papel Hermafrodita (1995)

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