sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Monstros no mundo europeu e ibero-americano no século XVI



Os monstros revelam uma crise de categorias. No mundo contemporâneo, eles demonstram como "a nossa crença no racionalismo e no mecanicismo, bem como na visão de progresso inevitável, está fragmentada." (PRIORE, 2000, p. 12). Como a personagem G.H de Clarice Lispector, o monstro é o homem que abandonou a humanidade para encontrar-se com a fera. Se hoje, é esse o contexto, o que pensavam os nossos antepassados sobre os monstros?

Em resposta a esse questionamento a historiadora Mary Del Priore pesquisa os monstros do final da Idade Média e início do Renascimento. Em seu interessante Esquecidos por Deus (2000), a autora argumenta que os monstros, diferentemente do que ocorre no mundo contemporâneo, eram temidos como um perigo real. "os monstros não eram uma representação, e sim um fato", escreve. Esse quadro só começa a se alterar com o 'descobrimento' do desconhecido alé-mar e o desenvolvimento da fisiologia.

Dentre os documentos pesquisados, Priore destaca o trabalho de Ctésias de Cnido (398 a.C.), médico grego e prisioneiro na corte de Ataxerxes II. Ele escreveu um manuscrito graças ao qual a Índia, território de prodígios, é empurrada para os confins da Terra. Ele aí consigna todas as histórias fabulosas que existiam desde Homero, povoando o país de raças fantásticas: os pigmeus, combatentes de gruas, aves com pescoço longo como o da girafa; os ciápodes, donos de um único e veloz pé que lhes servia de guarda-sol com o qual se protegiam das intempéries; os cinocéfalos, homens com cabeça de cachorro, comunicando-se por latidos por serem incapazes de usar linguagem articulada; homens peludos e sem cabeça, com olhos nos ombros, conhecidos como blêmias; homens com oito dedos e oito artelhos, cujos cabelos, brancos até os trinta anos, paradoxalmente energreciam com o passar do tempo; homens com orelhas tão grandes que lhes caíam sobre as costas, como melena.


Ciápodes: o desconhecido povo da exótica Índia


Quantos aos animais fabulosos, Ctésias descreve a antropófaga mantícora, com cabeça de homem, corpo de leão, cauda de escorpião e três fileiras de dentes; os grifos e os unicórnios, guardiães de montanhas de ouro; as gigantescas formigas, dotadas de pinças e capazes de voar.

Fragmentos de sua obra Histórias do Oriente sobreviveram graças a Plínio, o velho, que serviu de referência a todos os teratólogos latinos que escreveram entre os séculos III  e XIII: Solinos, Macróbio, Marciano Capela, Santo Agostinho, Isidoro de Servilha, Tomás de Cantimpré e Vicente de Beauvais.

Dentre esses monstros, a mantícora é sem dúvida o mais conhecido e temido pelos viajantes que conheciam a exótica Índia. Semelhante a Quimera dos gregos, a mantícora, devido ao fato de ser antropófaga, era a responsável pelo desaparecimento de  milhares de pessoas no mundo antigo (hoje acredita-se que os desaparecimentos, na verdade, tenham sido causados por Tigres). Veja a descrição que Brunneto Lattini em Livro do Tesouro (1263) faz da criatura (apud Priore):


A mantícora: a mantícora é um animal que vive na Índia, possui fisionomia humana, cor de sangue, olhos amarelhos, corpo de leão, cauda de escorpião e corre tão rápido que nenhum outro animal pode lhe escapar. As mantícoras se acasalam de tal maneira que ora uma fica embaixo, ora outra.

Entrelinhas:  Tentarei fazer um post só com referências bibliográficas para que toda vez que atualizar algum dado aqui, seja também atualizado na bibliografia. Assim sempre teremos os dados atualizados de nossas pesquisas. Amanhã, não se esqueçam, é a véspera de Todos dos Santos, ou Dia das Bruxas. O deus que morreu atravessou os portais e os espíritos poderam agora trafegar com facilidade entre os dois mundos (assunto para um futuro post). Abraços monstruosos e até a próxima semana.


Para saber mais:

PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Imagem: Mantícora do livro The History of Four-footed Beasts (1607).

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